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Tecer o código, entre passado e futuro

Texto escrito para a publicação "Ambiente Moderno"

lançado em 2024 pela Azulejo Arte Impressa

 

 

    ​O que diríamos da partitura musical se não fosse a peça executada e, por isso, fazendo a música existir? Da mesma forma, um bolo não pode ser encontrado na receita que ensina a prepará-lo; ele só existe porque é assado. Toda partitura é, essencialmente, uma instrução, uma espécie de design ideal capaz de moldar e direcionar para algo que se imbrica mais na experiência do que na ideia, sempre abstrata. Talvez não seja exagero aproximá-la do algoritmo, na medida em que parece transmitir algo embutido na ideia de código, uma sequência de informações, um agregado.

     Ao criar uma espécie de compêndio de padrões Gabriel Pessoto pulveriza e propaga modos de fazer, abrindo o código, produzindo algo que é generoso e desviante ao mesmo tempo. Seus trabalhos estão aqui presentes em específicas configurações que se apresentam enquanto composições de sobreposições visuais, mesclando passado e futuro. A propagação, por sua vez, não se dá como quem entrega ao outro, de bandeja, os caminhos programáticos para um resultado unitário final, mas como quem expõe para que, eventualmente, alguém possa criar sua própria reprodução ou, quem sabe, apenas imaginar, sentir-se impelido, desejar.

     O conjunto de imagens que encontramos nesta publicação, através de produções em bordado e tapeçaria, parece produzir um gradiente temporal profundamente anacrônico. Enquanto pensamos na atmosfera da década de 90, nas casas das avós, nos videogames de 8 bit e nos padrões florais tradicionais, é como se emergissem juntos no primeiro plano os emojis, as selfies, a imagem pixelada, a digitalização da superfície. Com isso, todo o burburinho ligado a ambos os conjuntos aparece como paisagens sobrepostas, formando algo que é tão simulacro como um fractal de realidade. Ao mesmo tempo, a mídia com a qual Gabriel Pessoto trabalha é têxtil, e cada gesto estabelece uma relação com um código que é também computacional.

     A recepção do leitor desta revista é como o ato de desvelar certos mistérios deste código, uma tentativa de diminuir a distância entre saber e fazer. No entanto, não é assim que nos relacionamos com todo e qualquer código? Sempre como se houvesse uma bruma ou uma nuvem envolvendo qualquer receita ou partitura, com a insistente pergunta sobre o que está por trás de determinada ação. O público é convidado a participar desse desvendamento e dessa oferta, na mesma medida em que é impelido a retomar uma prática que, muitas vezes, aprendemos com nossas mães ou avós.

     Diante de tamanho anacronismo, surge uma curiosidade. Um interesse, talvez, pelos caminhos plásticos e móveis da imagem enquanto superfície viva e metamórfica. Quando pensamos no que parece demasiado vintage e antigo ao olhar nas imagens aqui dispostas, facilmente se produz uma distorção: elas parecem conservar um grau de artifício. Como lidar com esse conjunto de imagens quando ele, em sua mobilidade, pode reaparecer no entrelaçar dos fios?

     A irregularidade, de alguma forma, interessa. Como acomodar a imagem descartável, digital, precária, à beira de sucumbir, na mídia têxtil e palpável? Como compor pixels e pontos? Se voltarmos a memória ao túnel do tempo, podemos conceber o espaço doméstico antigo como uma literal domesticação: do corpo, dos trajetos designados aos papéis de gênero, como se as possibilidades fossem, essencialmente, partituradas. A superfície eletrônica fria de agora, contudo, também está refém de certa domesticação, diante de sua saturação e aceleração. As receitas e partituras encontradas nesta publicação poderiam ser pura virtualidade se não ganhassem, em um impulso generativo de movimento através das composições criadas pelo artista, cores, volumes e temperaturas.

     Nos trabalhos de Gabriel Pessoto os motivos comportam importantes graus de distorção. Não se trata de uma abstração propriamente, mas de tomar o figurativo em todo o seu viés simbólico, encontrando essas imagens em uma relação franca com um campo cultural, do comportamento e das convenções. Aqui, a metamorfose implica tomar as perspectivas como ocasiões de produzir deformações, entre outros desvios.

     A biblioteca de Babel, outrora imaginada e descrita pelo escritor Borges, realizava múltiplas e numerosas combinações, conformando a totalidade da escrita do mundo. Em um disparate, podemos imaginar uma ultra-reprodução das receitas e dos códigos aqui encontrados, como se fosse possível conceber uma coleção vasta de bordados e tapeçarias, ainda que imaginária, projetada na infinitude. Mas talvez isso não seja necessário. Pode ser que esta revista sirva como um vetor, um caminho aberto entre a instrução e a realização, uma perfuração diante dos problemas, durezas e limites que são próprios da imagem quando colocada em perspectiva diante do tempo. Não à toa sabemos da qualidade performativa dos gêneros enquanto partituras abertas. Através do código é possível corromper e desidealizar, acreditando na possibilidade de produzir matizes metamórficas que se situam entre o que há de mais longevo e as formas futuras mais plurais.

 

Daniela Avellar

Setembro de 2024

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