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Gabriel Pessoto e Nicole Kouts são os artistas.

Caio Bonifácio é autor deste texto.

Este suporte funciona também como arquivo para as instruções reunidas na exposição.

 

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O projeto Trocando figurinhas começou em 2020, durante a residência Temos Vagas! #2, no Ateliê 397 — onde Gabriel e Nicole se conheceram. Eu os conheci dois anos depois, na comemoração das 500 figurinhas trocadas, no galpão do 397, com o lançamento da primeira publicação: um pôster com as figurinhas reunidas e texto de Gabriel Bogossian.

 

Nesse texto, Bogossian resume o projeto: “Mantidos em casa pela pandemia, os dois artistas criaram uma espécie de diálogo por imagens, onde, diariamente, um deles responde com uma figurinha à figurinha que o outro postou no dia anterior.”

 

Tive o prazer de acompanhar os artistas no lançamento da primeira edição, em 2022. Neste ano, então, o projeto chega a 2000 figurinhas trocadas. (Por uma questão logística, a exposição acontece na marca de 1870 figurinhas.) Tenho o prazer de conversar com os dois, visitar o ateliê que eles compartilham e acompanhar parte do processo deles – para então escrever este texto.

 

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A exposição a que este texto responde pode ser descrita como uma reunião de instruções, cujos efeitos se materializam nas imagens e objetos apresentados. A maior parte dos trabalhos tem instruções escritas, como apresentado no dossiê de projetos não executados. O trabalho Trocando figurinhas: Urna figurativa, além de um texto, conta com uma televisãozinha que transmite as instruções por uma sequência de imagens misteriosas e logicamente ambíguas.

 

Essas instruções sugerem as condições e as regras para executar uma determinada ação, cuja finalidade é acontecer. Pelas instruções, os artistas se ausentam momentaneamente, deixando que o texto escrito ocupe seu lugar como propositor. Há algo que ecoa uma ideia de administração recorrente na arte conceitual – que se torna mais evidente na padronização da combinação de cores oficial do projeto, em amarelo e azul, e na materialidade mais ou menos burocrática do papel impresso.

Em propostas como Trocando figurinhas: D.I.Y. e Trocando figurinhas em trânsito há um flerte com a arte postal, com a produção de uma colagem ou a seleção de uma imagem, e seu envio por correio ou direto por debaixo de uma porta. Em Trocando figurinhas & palavras grifadas não há um objeto resultante, mas a ação parte de um objeto e se torna uma imagem digital, enviada por e-mail para um destinatário. Todos esses processos parecem ter como resultado algo enigmático: uma colagem de imagens mais ou menos desconexas, uma imagem ou uma palavra isolada.

 

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No vídeo Trocando figurinhas: Operação piloto, de 2020, vemos Gabriel e Nicole usando o computador, as áreas de trabalho de cada um e uma prancheta compartilhada onde eles depositam imagens. Nos 72 minutos de duração do vídeo, os artistas pesquisam palavras em um mecanismo de buscas e percorrem um caminho misterioso em direção a uma imagem, que é então compartilhada e substitui o texto verbal que foi seu gatilho. O processo é cronometrado (às vezes não) sem um motivo evidente.

 

O ambiente digital registra o nascimento do projeto. Em 2020, durante a pandemia, a residência onde Gabriel e Nicole se conheceram aconteceu de forma remota, tendo o computador como ponto de contato. Pessoalmente, nesses anos de pandemia, meu uso de computador teve uma intensidade comparável apenas ao uso na adolescência. Lançado em 2007, o Tumblr funcionava como espaço aberto de interação: cada um podia ter seu blog, publicar imagens, replicar, curtir, comentar.

 

Conversamos sobre como cada um usava seu blog na adolescência. Cada usuário tinha suas próprias regras, seus códigos compartilhados, como membros de uma comunidade. A forma das imagens e sua sequência comunicavam uma construção estética e ideológica, construindo uma identidade digital e estabelecendo relações entre indivíduos separados pela distância real. Esse espaço é recolocado por Trocando figurinhas, estabelecendo uma relação prolongada entre Gabriel e Nicole, que só foram trabalhar juntos mesmo, presencialmente, na realização desta exposição.

 

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Fiquei especialmente interessado pela história que os artistas contaram, de uma pessoa que comprou a primeira edição do pôster de Trocando figurinhas e ficou encucada de que ali havia um texto a ser decodificado. Sem compreender esses códigos, levou o pôster aos mais jovens, esperando que fosse uma linguagem de memes, mas eles também não entenderam.

 

De certa forma, ela tinha razão: trata-se de um texto não verbal, que registra o diálogo entre Gabriel e Nicole. Sempre que eles postam uma nova imagem, ela funciona como uma reação à anterior. Uma postagem parece sempre a transformação da imediatamente anterior e ecoa em sua seguinte. Quando se pula uma única dessas imagens, estabelecendo relações entre duas figurinhas distantes, segue-se um caminho de possibilidades absurdas, rumo a teorias da conspiração.

 

Em algum momento, a Nicole comentou que tem algo de dadaísta nos trabalhos desse projeto, e usou a imagem do método Tristan Tzara de fazer poemas: colocar palavras num saco, chacoalhar e sortear. Também penso que os artistas chegam a cada imagem como se chega a um Objet trouvé (objeto encontrado) surrealista: à toa, de repente, ele parece destacado de sua significação comum em meio aos outros objetos, aparenta ser especial por motivos inconscientes. Acho que o texto das imagens é mais ou menos dessa forma, porque o texto resultante pode sempre ser mais ou menos nonsense.

 

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Outras pessoas são convocadas a participar dos trabalhos pelas instruções de como fazer, que compõem os trabalhos. Daí elas fazem sozinhas ou participam junto, sob “supervisão”, como em Trocando figurinhas: Urna figurativa e no projeto Trocando figurinhas: Dicionário dinâmico.

 

Os trabalhos são propostas de jogos, e a participação é pensada como um jogar junto. O que surge como uma experimentação artística entre Gabriel e Nicole, que se propõem a seguir uma série de regras auto impostas sem fim ou finalidade determinados, vira uma proposta, que visa compartilhar a diversão envolvida na experimentação, através de instruções. Se há algo dadaísta, é como a prática duchampiana de propor um estado de jogo, sistematizando o acaso por meio de regras gratuitas.

 

O jogo se desenrola no tempo. Em Trocando figurinhas em trânsito, ele começa e permanece suspenso, à espera da próxima jogada. As jogadas acontecem sem muita racionalização. As regras determinadas estabelecem um enquadramento, onde os movimentos de cada jogador, suas decisões, são livres e espontâneas, podendo revelar um conjunto mais silencioso de regras internas e um arquivo pessoal de associações mobilizado pela necessidade da jogada.

 

Entre os projetos e os trabalhos executados, todos desenvolvidos a partir de Trocando figurinhas, há um jogo de construção de sentido que se direciona ao humor e à diversão permeados pelo nonsense. Essa mobilização de imagens, de certa forma, restitui a elas seu caos original.

 

Quando fui ao ateliê, Gabriel passou para nós um café enquanto contava da viagem que fez para conhecer Inhotim e Ouro Preto. Conversamos sobre como o parque é lindo, as galerias são impressionantes, e o choque entre o ambiente fantástico da arte contemporânea e o cenário catastrófico/misterioso e também, obviamente, espetacular do extrativismo pela mineração é insistentemente presente. Arte contemporânea e negócios escusos formam uma parceria forte. Nenhum trabalho de arte pode estar incólume das contradições que dão textura (às vezes asquerosa) à vida.

Trocando Figurinhas remete com nostalgia ao ambiente digital, mesmo no recurso à plataforma já quase obsoleta do Tumblr, na forma ultrapassada do blog. A proposta do trabalho remete à brincadeira infantil da troca de figurinhas, que pode ser feita diretamente, conforme o interesse das crianças pelas figurinhas de seus colegas, ou na forma mais sortida do “bater cards”. O vídeo Trocando figurinhas de memória organiza uma sequência de métodos ultrapassados de armazenamento de dados, como disquetes, CDs, DVDs e HDs, cada um que, em seu momento, prometeu ser o arquivamento pessoal definitivo.

 

Esses aparelhos de arquivar dizem respeito a uma materialidade pessoal da memória, enquanto o jogo aberto remete a uma internet entendida como pura virtualidade — um campo de possibilidades com menor presença das big techs. Sempre soubemos dos grandes cabos submarinos que davam corpo aos dados digitais, mas talvez a discussão da geopolítica da internet não fosse tão acalorada na década de 2000. Hoje as grandes corporações que colonizaram o ambiente virtual fazem com que a proliferação de data centers seja um problema mais evidente. A nuvem chega ao chão em complexos de computadores que drenam recursos naturais e resultam no empobrecimento ambiental das populações que habitam suas redondezas. Há uma relação tácita entre internet e mineração.

 


Caio Bonifácio

Julho de 2025

Caio Bonifácio (São Paulo, 1996), nascido e criado na Brasilândia, é artista, curador, professor e pesquisador. Foi professor de História da Arte no Cursinho Popular da ACEPUSP; editor da Revista Tonel, publicação independente de arte, curador e pesquisador no Ateliê 397.

Vista da exposição dossiê trocando figurinhas, 2025. Ateliê397, São Paulo. Foto: Estúdio em Obra.

Gabriel Pessoto Artista Visual Arte Contemporânea Arte Digital Tapeçaria Arte Têxtil

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