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TEXTOS

procedimento, apropriação, ruptura: contra-arquivo em esquecimento

(texto escrito para a publicação "Ambiente Moderno" em 2021)

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O pedido em torno da escrita deste texto se dá a partir de uma primeira conversa com Gabriel Pessoto, onde, em sua fala, escuto uma passagem que muito me toca: o artista me conta sobre uma trajetória pessoal na qual existiria uma ausência de referência de imagens íntimas e afetivas entre pessoas fora do registro da heteronorma. Isso uma vez que lhe parece a pornografia o único lugar onde esse tipo de imagem se manifesta. Ao mesmo tempo neste campo haveria, para ele, algum descolamento entre afeto e sexo. Esta breve conversa nos circunscreve e nos aproxima, criando pontos de contato onde uma dimensão comum emerge.

Talvez este pedido se dê em uma temporalidade outra, como a dimensão performativa adentrada por Gabriel quando se propõe a seguir instruções de antigas revistas de costura destinadas a mulheres que manufaturavam o seu próprio enxoval de casamento. Mas aqui, o ritual de preparação para o acasalamento acontece em um registro outro, onde tecido pode ser papel, ponto cruz pode ser pixel, e, principalmente, tornar-se, ser e fazer podem, efetivamente, ser desfazer e violar.

Partir deste tipo de memória e material, que não deixa de ser um arquivo, me faz pensar em um funcionamento arquivista delineado por Jacques Derrida: enquanto algo topológico, no que se refere ao lugar, também ao lar, e nomológico, que se liga à ideia de lei e de autoridade. A vida romântica e afetiva ilustrada pelas imagens contidas nessas revistas designa um tipo específico de modelo familiar, também de intimidade, inscritos em um espaço doméstico e conjugal heterociscentrado. Os procedimentos, as apropriações e as rupturas propostos por Gabriel Pessoto exercem uma recusa ativa. Pode-se dizer que de alguma forma rejeitam a maestria em nome de uma ideia de fracasso, nos moldes indicados por Jack Halberstam.

Derrida analisou precisamente as dificuldades de arquivar, acreditando ser o arquivo um mal de arquivo. Ou seja, algo que está sempre sendo assombrado por espectralidade, por apagamento. Quando falo aqui em memória, não se trata de lembranças que se ligam a evidências concretas, mas a genealogias fraturadas. Vejo as obras, imagens e narrativas criadas pelo artista como possibilidades de fazer circular um arquivo outro, um conjunto de ideias de fracasso que, como dito anteriormente, se contrapõem à oposição binária e infernal, perpetrada pelo capitalismo global, entre o éthos de perdedor e o sucesso associado ao lucro a todo custo (que também se liga a noções de disciplina e controle). Afinal, quem está perdendo algo?

Pessoas queer, ou dissidentes do sistema sexo/gênero, ou sujeitos situados além da heteronorma, são frequentemente colocados ao lado da estranheza, da falta e também do fracasso (em seu significado hegemônico). Vale lembrar que pessoas queer também inspiram coletividade, com seus conjuntos de tecnologias capazes de ativarem outros modos de vida. Muitas vezes, inclusive, pensando na esfera do lar e da moradia, criando casas de acolhida, articulações em rede, experiências para além do espaço doméstico conjugal.

Os trabalhos de Gabriel Pessoto nos fazem lembrar e esquecer. Lembrar carrega consigo as dificuldades do arquivar, algo sempre perturbado pelo seu mal. Esquecer ativamente pode ser lembrar de outra forma, ou aprender a viver com certos fantasmas. É certo que o esquecimento pode ser instrumento poderoso de uma cultura dominante, mas será que é possível pensar uma temporalidade queer capaz de romper com uma noção heteronormativa de tempo? Esta possibilidade me parece ressoar em Ambiente Moderno. Um tempo de recusa, mas de construção. Um imaginário construído, cuja atmosfera nos aponta os afetos, mas sobretudo os desejos, como insustentáveis e em alguma medida impossíveis. Não porque intoleráveis, muito pelo contrário, mas porque em permanente deriva. E me deixo levar por ela, em uma recusa do caminho da conquista e do sucesso quando circunscritos em uma lógica dominante, lógica essa que com seu arquivo, suas imagens, narrativas e partituras restritas sustentam uma forma de mundo que sempre nos parece inevitável, mas é apenas uma forma de lembrar.   

Daniela Avellar

Agosto de 2021

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Ambiente Moderno
(Exposição "Ambiente Moderno", 2021. Galeria da Fundação Ecarta - Porto Alegre, RS)


É interessante notar: as imagens nos ensinam muito. Na forma de mapas, ampliações microscópicas ou modelos e diagramas – os exemplos são inúmeros –, elas nos permitem enxergar conceitos abstratos, realidades mínimas ou áreas gigantescas.
E não só. Por meio delas, podemos nos imaginar em cenas, projetando-nos em situações e lugares desconhecidos – ou sermos levados, como fazem o marketing e a pornografia, a instâncias insuspeitas do desejo. ​Ambiente moderno​, exposição individual de Gabriel Pessoto, se alimenta desse universo, entre a pedagogia e a propaganda, que certas imagens habitam. Parte de uma investigação que se desenvolve também em outros projetos e obras, a exposição inclui instalações, fotografias, vídeos, GIFs e desenhos nos quais Pessoto se apropria dos conteúdos de revistas de costura e artesanato, relendo as instruções de produção e as imagens que elas publicam. As diferentes formas de apropriação desses conteúdos conferem ao conjunto de obras reunido aqui um rico cruzamento de sentidos, onde se combinam reflexões sobre a técnica das imagens, sua política e nossas construções de gênero.
Pois a apropriação estabelece seus deslocamentos e lança questões. Em algumas obras, Pessoto emula fotografias de decoração em que – ao contrário das imagens do lar ideal, onde cada membro da família cumpre à perfeição seu papel – os bordados produzidos e fotografados foram aplicados em toalhas, fronhas e guardanapos feitos de papel manilha, conhecido papel rosa usado na embalagem de produtos diversos. A matéria-prima, inadequada para a produção desses objetos, reforça o aspecto artificial dos cenários das revistas em que o artista se baseia e sublinha o caráter fantasioso de suas imagens e de seus enunciados.
Outras obras aprofundam a desconfiança sobre as aparências que, de maneiras diferentes, atravessa a exposição. Na instalação ​mesa,​ os objetos – feitos de tecido quando deveriam ser de cerâmica, ou de papel quando deveriam ser de tecido – não disfarçam sua inadequação e disfuncionalidade. Em certos vídeos, os campos de cor das imagens originais foram substituídos por trechos de pornografia gay, como se essas deixassem entrever o que de fato se passa nos ambientes idealizados das revistas. Noutros casos ainda, o título das obras, tomados dessas mesmas publicações, põem em evidência um imaginário de outro tempo em torno do espaço doméstico e conjugal. Desse modo, o gesto desvelador indica a dimensão política da prática de Gabriel Pessoto: pois se o universo de imagens em meio ao qual surge a obra é pautado pela pedagogia e pela propaganda, é fundamental desconfiar dele e buscar lançar luz sobre o imaginário cultural que o modela – e que ele, em troca, ajuda a modelar.
No caso de ​Ambiente moderno​, esse imaginário demarca de modo nítido distinções de gênero: as revistas nas quais o artista se baseia são dirigidas majoritariamente ao público feminino, responsável pelo trabalho manual delicado e dedicado ao lar. Por isso, pretendem ensinar não só bordado e decoração, mas também formas de comportamento e de vida para quem o domínio de certas técnicas representaria um lugar de distinção e destaque.​ ​Nesse universo, imagens e textos assumem um caráter moralizante insidioso; o artista age para desviá-los de seu propósito e invertê-los, usando-os a seu favor.
São procedimentos poéticos permeados pelo humor e pela atenção a objetos do cotidiano; a emulação de um repertório imagético e discursivo em torno do espaço doméstico e conjugal desnuda sua dimensão prosaica, em alguns casos patética, e como certos construtos que o organizam achatam, às vezes cegamente, nosso repertório subjetivo. Assim, Pessoto a um só tempo ressalta o caráter histórico do nosso imaginário social e lança luz sobre a dimensão política das imagens e de suas técnicas de produção. Em um mundo saturado de mercadoria imaginária, são gestos fundamentais para compreender não só o repertório que nos forma, mas também o ir e vir do presente e os nossos horizontes de liberdade.
Gabriel Bogossian
Dezembro de 2020


Curto-Circuito
(Exposição "Ambiente Moderno", 2021. Galeria da Fundação Ecarta - Porto Alegre, RS)


No texto de divulgação da exposição “Ambiente Moderno”, de Gabriel Pessoto, o curador Gabriel Bogossian descreve algumas obras do artista como sendo uma espécie de “pequeno curto-circuito de técnicas”. Minha reflexão acerca da produção de Pessoto partia já, mesmo antes de me propor a desenvolver o presente texto, de uma análise dos processos de hibridação presentes em suas obras, principalmente as que são elaboradas a partir de uma relação entre o ponto- cruz dos bordados e a digitalização das novas mídias.
Essa hibridação, esse “curto- circuito”, como Bogossian tão bem descreveu, parece surgir no trabalho de Pessoto em um contexto que Marshal McLuhan descreve como sendo uma resposta a ambiência das novas mídias no processo de assimilação destas pela contemporaneidade. McLuhan diz que são os artistas os primeiros a se aventurarem por essas tecnologias e que os fazem através de uma assimilação de seus procedimentos por meio de formatos já conhecidos no imaginário popular. Essa transdução de uma nova mídia em uma linguagem já assimilada torna o processo de compreensão desse choque menos doloroso, mais familiar. No trabalho de Pessoto, esse processo é visível pela ressignificação dos materiais, como apresentado na instalação “mesa” - que toma o tecido como papel, e a louça como tecido -, e
pela reapropriação dos procedimentos digitais pelos trabalhos que utilizam o ponto-cruz como modo de construir imagens análogo ao do píxel (ou talvez quando usam o píxel como ponto- cruz).
O processo de hibridação entre o píxel e o ponto do bordado, entretanto, ocorre de uma forma complexa, ainda que possa nos parecer uma simples relação formal entre as técnicas. Para compreender a profundidade na qual é criada essa assimilação entre píxel e ponto-cruz é preciso recorrer a uma análise do artista francês Edmond Couchot sobre esse ponto final constituinte das imagens digitais. O píxel representa, para o Edmond, a total hibridação entre tecnologias televisivas e as de cálculo computacional, gerando uma imagem que se apresenta como ótica - tal qual a fotografia analógica, ou a própria câmera obscura que projeta a perspectiva para a pintura -, mas que carrega em sua morfogênese todo automatismo do cálculo e da simulação computacional. É esse mesmo tipo de hibridação que vemos no trabalho de Gabriel Pessoto, mas dessa vez tomando o bordado como processo orgânico em contrapartida ao processo digital.
A hibridação, vale lembrar, ocorre de forma simétrica nas obras de Gabriel Pessoto: ela é tanto o processo digital circunscrito no “artesanal” do bordado quanto o processo do bordado transposto ao digital. O artista deixa explícita essa relação quando recorre ao modelo de instruções do bordado para criar o vídeo “Flor Singela”. Cada vídeo, extraído de pornografia vintage, funciona como um ponto porvir para o desenho; cada ponto deste é formado por imagens compostas por píxels, calculadas e inseridas em um contexto de simulação. Segundo Couchot, nenhuma imagem digital corresponde mais a um objeto/sujeito real: é sempre um simulacro gerado pelas instruções dos códigos que formam as imagens. Quando Pessoto sobrepõe o píxel dos vídeos formando uma matriz na talagarça do bordado há uma meta-instrução em ação: os códigos que formam a imagem digital e o código da receita do bordado porvir.
Gabriel Pessoto nos deixa claro que há um forte interesse por uma materialidade. Esta, então, é reconfigurada de uma maneira que, ao mesmo tempo que possa causar algum tipo de estranhamento, também remete a um local de conforto. Tal conforto se deve a essa hibridação; a esse processo de assimilar as materialidades e as temáticas; de reconhecer ali tanto os procedimentos que já nos são familiares quanto os que ainda estão em desenvolvimento; bem como ao esmaecer a representação explícita do que a intimidade esconde.
Chico Soll
Janeiro de 2021


 

O paraíso dos marrecos

(Exposição coletiva "O paraíso dos Marrecos", 2022. Residência Fonte, São Paulo, SP)

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O título desta exposição, O paraíso do Marrecos, foi extraído de uma crônica de João do Rio publicada em 5 junho de 1903 na Gazeta de Notícias. Nela, o escritor enaltece a recém-inaugurada iluminação do Passeio Público da cidade do Rio de Janeiro, contrapondo a claridade do parque às “escuríssimas alamedas do velho Campo de Sant’Anna”, onde “as árvores, as boas e castas árvores, já devem estar escandalizadas com o que distintamente ouvem e com o que vagamente avistam à noite”. Com a ironia que lhe é própria, João do Rio conclui: “No passeio público, os palmípedes já se vão habituando ao movimento, à música e à luz. Mas, no Parque da República, as alamedas ainda são o paraíso dos marrecos... e de outros animais de mais tino e de menos inocência”.

Esta visão moralmente positiva do projeto de modernização da cidade do Rio de Janeiro não predomina no conjunto da obra de João do Rio, que diagnosticou importantes paradoxos da modernidade à brasileira. Para além do elogio das luzes, interessa-nos, na crônica em questão, os indícios da familiaridade do escritor, sabidamente homossexual, com o bas-fond carioca do começo do século. Através de seus escritos, João do Rio testemunhou a implementação heterogênea e desigual de um projeto de modernização no Brasil, e seus efeitos na criação de zonas de luz e de sombra no espaço urbano, caracterizadas, respectivamente, pelas contenções impostas pelo projeto civilizador e pela livre circulação do desejo e dos corpos que não cabiam em tal projeto. A vida e a obra do dândi tropical oferecem pistas interessantes para transitarmos pelas poéticas aqui reunidas. A possibilidade de pensarmos masculinidades e homoafetividades no plural relaciona-se, no contexto da exposição, com uma reunião de poéticas que flertam com o gesto do cronista, que cria sua obra ancorado na efemeridade dos acontecimentos vividos e na combinação, em doses variadas, de realidade e ficção, fornecendo instantâneos de uma realidade que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva.

Embora permeie grande parte das obras aqui reunidas, a infiltração do gênero e da sexualidade no quotidiano pode ser nitidamente observada, com sua carga erótica e sexopolítica, nas pinturas de Adriel Visoto e Fefa Lins. A paleta, a escala e pictorialidade das imagens de Visoto acabam por equalizar a circulação do desejo voyeurístico entre as diferentes cenas de leitura e a de masturbação, desarticulando as modulações hegemônicas do desejo. Fefa Lins, por sua vez, pinta cenas que, a despeito de sua quotidianidade, foram raramente representadas e, por consequência, permanecem à margem do imaginário da masculinidade.

Tal imaginário acerca de como ser homem é forjado desde a mais tenra infância. O trabalho de Bruno Novaes ancora-se nas interdições feitas aos meninos em relação a determinados signos (a cor rosa, por exemplo), e nas estratégias infantis para driblar tais interdições, ou negociar com elas. As performances e fotografias de Tales Frey alimentam-se das tensões que resultam da permanência desta normatividade ao longo de toda a vida e por diferentes espaços sociais. Sob a performatividade da masculinidade hegemônica, entretanto, também podemos localizar as ambiguidades do desejo homoerótico interditado. As poéticas de Marcelo Amorim e Élcio Miazaki orbitam ambientes e instituições predominantemente ocupados por corpos masculinos que, em seus próprios rituais de funcionamento, descortinam, sob a convivência entre iguais, a imagem fugidia do tesão entre homens. As cenas de iniciação das fraternidades do contexto universitário norte-americano inspiram a grande tela de Amorim, ao passo que a vida nas casernas, outra importante categoria da pornografia gay, encontra-se no cerne da pesquisa de Élcio Miazaki.

A conciliação entre o desejo homoafetivo, muitas vezes informado pela pornografia mainstream, e os signos - singelos e proibidos - do romantismo, dito feminino, estrutura a pesquisa de Gabriel Pessoto que, em seus vídeos e objetos, apropria-se de técnicas e materiais associados ao lar e ao enxoval e de material pornográfico, produzindo obras que condensam a tensão resultante desta paradoxal educação sentimental. A obra de Matheus Chiaratti também pode ser pensada neste sentido: o trabalho nasce do encontro do artista com (a)casos eróticos, uma série de bordados de Rivane Neuenschwander, e se configura como uma homenagem/obsessão na qual podemos (entre)ver falos voadores que remetem às rupestres inscrições dos banheiros públicos.

Ser homem e ser gay são apenas dois marcadores, em meio a muitos outros, que nos inscrevem no mundo social e que nos posicionam política e afetivamente diante da vida. Ser cis ou trans, negro ou branco, pobre ou rico resulta em uma infinidade de configurações possíveis para a masculinidade. No contexto brasileiro, colonial e racista, os trabalhos de Rafael RG, Márcio Junqueira e Rafael Amorim, oferecem narrativas da homoafetividade que se desdobram em outros territórios e oferecem um contraponto ao monopólio destas discussões pela branquitude. A pesquisa de RG em torno das memórias do primeiro beijo foi realizada com pessoas LGBTQI+ com mais de 50 anos, de diferentes regiões do Maranhão, o desenho sobre passagem rodoviária de Junqueira integra seu projeto @diario_de_pegação, que pode ser visto na íntegra no instagram e, também Rafael Amorim obras que nascem de sua própria jornada afetiva, ancorada territorialmente na periferia da cidade do Rio de Janeiro.

Os aplicativos de pegação, a pornografia a um clique, a crítica contrassexual da masculinidade falocentrada e o reconhecimento de marcadores sociais como raça e classe como imprescindíveis para situar masculinidades e homoafetividades são apenas alguns dos fenômenos que aparecem na crônica fragmentada de nossa época. O paraíso dos marrecos reúne pinturas, desenhos, vídeos, fotografias e instalações que nos ajudam a compor o retrato de nosso tempo, mas procura fazer isto sem iluminar as vias por onde circulam os corpos e os afetos dissidentes.

Ícaro Ferraz Vidal Jr.

Maio de 2022

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Sobre Monstros

(Exposição coletiva "sobre monstros", 2022. Lona Galeria, São Paulo, SP)

 

A imagem do monstro debaixo da cama ou dentro do armário já habitou o imaginário de toda criança, e mesmo as culturas nas quais não existem camas ou armários elaboram histórias de seres malignos e aterradores. Na vida adulta eles continuam presentes, embora nem sempre condensados em formas únicas ou sequer separadas de nós. Alguns são insidiosos – como padrões impostos de comportamento, ideologias amplamente disseminadas e dogmas que se amalgamam com culturas vigentes -, enquanto outros se desenvolvem dentro de nossa própria subjetividade e, na maioria dos casos, são domesticados pelo código moral que nos foi ensinado. Estes costumam nos acompanhar até o último suspiro.

“Sobre monstros” parte de uma proposta curatorial semi-horizontalizada. Gabriel Pessoto e Gabriel Torggler foram convidados a indicarem artistas cuja produção dialogasse com a deles em termos conceituais ou formais. Com o conjunto definido, monstros e monstruosidades contemporâneas emergiram como um ponto que perpassa as pesquisas do grupo – o estranho, o bizarro, o que foge às convenções e aquilo que nos amedronta. Dos pesadelos às criaturas fantásticas, passando por convenções sociais opressivas e pulsões inconfessáveis, os monstros aqui se manifestam de diferentes maneiras.

distorções análogas, dupla formada por ᛈ⧩☈ର (Caroline Fernandes) e LDVC DMNQ (Vinícius Z. Chavarria) constrói seus desenhos simultaneamente, um processo “frankensteinista” que coloca suas subjetividades (e mesmo seus corpos) em estado de negociação constante. Gabriel Pessoto confronta os universos do ambiente doméstico e da pornografia através de estratégias que demandam uma visada atenta para captar as ironias do processo criativo. Gabriel Torggler apresenta obras recentes com materiais de construção civil, habitadas por criaturas em transição entre a figuração e a abstração. Os têxteis de Luciana Monteiro falam de um universo feminino sob a perspectiva das sombras que o ameaçam, como o machismo estrutural, e as sombras internas que resistem às regras comportamentais vigentes. Apropriando-se de imagens de acervos, Marina Woisky executa impressões distorcidas na fronteira entre o bi e o tridimensional. Por fim, Wagner Olino se vale do grotesco para expressar medos íntimos e coletivos em composições que buscam desconstruir o cânone e afirmar a feiura como resistência.

Diferentemente do que o cinema blockbuster ou a literatura best-seller nos apresenta, os monstros não são necessariamente medonhos ou abjetos. São familiares tanto em forma quanto em conteúdo, eternos, inevitáveis. Por vezes, mesmo quando não percebemos, têm a aparência do que costumamos chamar de belo.

Sylvia Werneck

março de 2022

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Canticle of the creatures
(Exposição coletiva "Canticle of the creatures", 2020. Plataforma OPENART Advisory)


If reposition and superposition are common processes in image history, Gabriel Pessoto embraces reference and image repositories (online and offline) as key aspects of his own practice. With this arsenal of images, Pessoto engages with the past to create simple, yet profound reproductions and reconfigurations of these images. Whilst inhabiting the same visual field and drawing techniques, suddenly cross stitch patterns share the same language as pixellead images, and renderings of the body find a common denominator across popular culture and religion.
This cross-history aspect of image making (and keeping) is also a crucial aspect of our last stop in Galatina’s rich churches history, the Basilica di Santa Catarina d’Alessandria.
The basilica is from a period long before the Baroque present in most of the architectural landscape of Galatina, here we go way back to the Romanesque period, built between 1369 and 1391 and on the bones of a Byzantine church (sec. IX) the location is a monument of memory and religion iconography.
Its walls are covered with frescos which contain all of the main biblical stories, from Genesis through to the Apocalypse. As well as this narrative device, the basilica also houses many temporal discourses that document the different stages of the passing of time, degradation and latterly restoration. Hidden amongst the frescos one can also find unclassified drawings at different stages of completion perhaps relating to more pastoral or seminal themes of the times.
This is an important aspect of this basilica’s history, and also to most historical buildings. In a process of restoring older images, the additional applications are included to maintain the same stories, although an image that is transposed, even if to remain the same, inevitably becomes something new. In Pessoto’s practice this negotiation of transitioning the same image is marked by the delicate materials selected by the artist. Often working with pencils, crayons and paper, in his series Old Motives images are manually reproduced and later cut into crochet patterns, finally the three drawings are completed as three mixed compositions.
Pessoto incorporates a key aspect of contemporary art, reference. Referencing is also a constant in religious imagery, where artwork’s reproductions are still remixed and reused, this use has expanded from the religious realm into the everyday in, for example, cross stitch patterns from 60’s magazines, where there is no distinction between original drawings of the time to Baroque motifs, Rococo flowers and Renaissance fonts, high and low culture together. All converging within the households of families across the Western world just to be now once again revised by Pessoto, in an unstoppable transmission and retransmission of images.

Brunno Silva
Setembro de 2020



Cálamo
(Exposição Coletiva "Cálamo", 2020. Massapê Projetos - São Paulo, SP)

The expression of the face balks account;
But the expression of a well-made man appears not only in his face;
It is in his limbs and joints also, it is curiously in the joints of his hips and wrists;
It is in his walk, the carriage of his neck, the flex of his waist and knees —dress does not hide him;
The strong, sweet, supple quality he has, strikes through the cotton and flannel;
To see him pass conveys as much as the best poem, perhaps more;
You linger to see his back, and the back of his neck and shoulder-side.

Walt Whitman


As obras reunidas em Cálamo nutrem-se de experiências e imaginários relacionados à homossexualidade masculina, em uma época na qual aceleradas transformações políticas, culturais e tecnológicas reverberam na sociabilidade e na afetividade gay. Os ataques à diversidade sexual e de gênero por parte do atual governo brasileiro, além de repercutir nas políticas públicas de educação, saúde e direitos humanos, legitimam socialmente uma série de discursos e práticas homofóbicas. Por outro lado, este retrocesso ocorre em um contexto cultural e tecnológico no qual o acesso a conteúdos narrativos, informativos e pornográficos com temática LGBTQIA+ cresceu de modo substancial, e a popularização dos aplicativos de encontros baseados em geolocalização fluidificou as fronteiras entre espaço público e espaço privado, tornando o encontro sexual entre homens (quase) tão acessível quanto uma série romântica com protagonistas gays no Netflix ou um vídeo de suruba da Bel Ami no Xvideos.
Os avanços e retrocessos em disputa no contexto sexopolítico contemporâneo são, seguramente, atravessados por novos vetores. Mas quando olhamos para a história das masculinidades, observamos uma série de tensões não resolvidas, desejos recalcados e afetos paradoxais que chegam à nossa época como sintomas do esgotamento de seus próprios parâmetros. Instalados no espaço que preserva as características arquitetônicas de uma antiga garagem, os objetos e vídeos de Élcio Miazaki e Tales Frey investigam contextos culturais e institucionais privilegiados na construção das masculinidades hegemônicas. Através de uma atenção às interações corporais entre homens e aos objetos caros a estes espaços e em diálogo com as linguagens da performance, os artistas tornam visíveis as pontas soltas do desejo que, não apenas escapam ocasionalmente, mas constituem os ambientes da caserna e da academia de boxe.
O segundo grupo de obras, exposto na galeria interna, sublinha aspectos íntimos e subjetivos da experiência contemporânea da homossexualidade, tensionada por mutações culturais que passam pela mediação tecnológica dos encontros sexuais, pelas transformações na indústria pornográfica pós-internet e pela emergência da imagem como tecnologia privilegiada para a construção de si. A produção pictórica de Adriel Visoto narra interações cotidianas do próprio artista com os ambientes e objetos que o circundam. A escala diminuta destas imagens remete tanto à intimidade de uma escrita de si, quanto às imagens que se precipitam ligeiras nos feeds de redes sociais que seguramos na palma de nossas mãos. Bruno Novaes também trabalha a partir de uma experiência autobiográfica, que é tensionada por um modo de organizar visualmente o conhecimento, caro ao universo escolar. A documentação sistemática de encontros sexuais resulta em uma espécie de cartilha na qual um abismo separa as palavras e as coisas, sublinhando a disjunção entre o íntimo e institucional. Esta ênfase na disjunção como aspecto estruturante da experiência gay aparece também nas vídeo instalações de Gabriel Pessoto. O artista se apropria de uma gramática visual que foi buscar em padronagens, bordados e ornamentos de roupas de cama, mesa e banho que, reunidas em enxovais, funcionam como símbolos de um ideal romântico de amor. Esta investigação formal converte-se, nas obras aqui expostas, em janelas e grids nos quais o artista insere conteúdo audiovisual pornográfico, preservando a tensão entre dois modos de amar que a tradição ocidental insiste em separar.
São múltiplos os modos como o contexto contemporâneo - permeado por avanços e retrocessos - e a história da masculinidade atravessam as pesquisas aqui reunidas. É preciso olhar para esta produção como cronistas de tempos vindouros, capazes de ver sob essas imagens e objetos as marcas deixadas pelo esgotamento dos padrões de masculinidade, pelas possibilidades e interdições afetivas de nossa época. Cálamo é o nome de um conjunto de poemas de Walt Whitman, frequentemente referido pela crítica pelas ambiguidades e tensões homoeróticas que condensa. Cálamo também se refere ao mito de Kalamos, filho do deus-rio Menandro, que era apaixonado por Carpo, um jovem de rara beleza. Certo dia, quando nadavam no rio, Kalamos tentou ultrapassar Carpo, que se afogou na competição. Conta o mito que a dor de Kalamos foi tão grande com a morte de seu amor, que ele definhou até se transformar em uma planta na margem do rio que, até hoje, é conhecida pelo nome de Cálamo e preserva uma forma fálica.
Ícaro Ferraz Vidal Jr.
Janeiro de 2020



Muito útil e enfeita
(Texto sobre o conjunto de trabalhos apresentado na exposição coletiva "Percurso da Memória", 2019. Lona Galeria - São Paulo, SP)


Musgo, baixo, fantasia ( e suas mil variações), alto alongado, leque, margarida ou jasmins, tulipas e chevron, avelã, cruzado, baixo, rendado com argolas e diagonal, solto no avesso, atravessado no avesso, conduzido, desencontrado, baviera, grade ou labirinto, escondido, sobreposto; da ordem dos geográficos - peruano, ou das frutas - abacaxi, ou das casas - colmeia. Já era algo como parte setecentos de um grande compêndio de mil e trezentos e, a cada página que se virava, mais fundo íamos pra algum lugar da memória.
Me lembro de algum dia alguém ter me dito que, na Rússia, moveram uma cidade inteira para o outro lado de um rio, apenas para poderem coletar mais facilmente os impostos. Já pensou se fosse simples assim os lugares de remanejamento da memória? Com um ou dois movimentos, e algum toque de não-tão-bem-vinda burocracia, mudaríamos o ponto de encontro entre a afetividade dos corpos e as casas com gramados baixos aos domingos, dos lugares que os copos tomam na mesa, das mãos que escorreram por nossos corpos e nossos cabelos, das palavras ouvidas.
Parou de folhear o compêndio de mil e trezentos em algum lugar perto do oitocentos e cinquenta e nove, e nos perdemos pensando em todas cidades, flores, animais, enfim, tudo tornado palavra ali tornado ponto. Passou veloz pelas nossas cabeças uma revoada de pássaros de lã, um jacaré de jacquard, do posto um ao posto seis de Copacabana, feita de barbante. Nos perguntamos quanto ela pesaria, e se seria passível de engolir o mar.
Um vento passa e rasga nossas roupas, suas tramas agora não mais são de tecido e já são cinco horas da tarde em algum domingo da infância. Fecho os olhos e olho pro sol, e a cor da luz filtrada pelas minhas pálpebras cerradas é a única da qual não lembro alguém um dia ter dito o nome.
Guilherme Teixeira
junho de 2019


 

um pouco por dia já é muito
(Exposição "um pouco por dia já é muito", 2018. Casa da Luz - São Paulo, SP)


Uma colcha de retalhos se espalha pelo chão, aparentemente buscando cobrir o espaço. Uma composição em forma de grade se estende na parede, articulando imagens de diversas procedências, como na criação de uma constelação de trocas afetivas. Um vídeo, aparentemente estático, nos revela ao nos aproximarmos movimentos dentro do seus campos de cor, nos fazendo questionar as suas procedências. Nas paredes, também se estendem tecidos, em um jogo certeiro entre a história das paredes e arquitetura do espaço expositivo e a sua relação com aquelas composições. Estes movimentos de aquecimento, de acolhimento, de domesticidade, são alguns dos traços característicos da produção de Gabriel Pessoto, aqui apresentados em sua primeira individual em São Paulo, onde o artista busca relacionar a sua prática, que circunda as linguagens do filme, desenho e escultura, a partir de fragmentos de uma intensa pesquisa e coleção de imagens, na Casa da Luz.
Ocupando a maior parede da galeria, o trabalho repositório: um pouco por dia já é muito, que dá título à exposição, nos apresenta uma constelação e uma visão única sobre os procedimentos e as referências que circundam a prática do artista. Nele, Pessoto flutua da consagrada forma moderna do grid, da grade, trazendo à esta técnica um espaço de domesticidade familiar e afetiva. Montanhas, naturezas-mortas, stills de vídeos pornôs são apenas algumas das dezenas de imagens que o artista elenca para trazer ao espaço uma manifestação única de rimas visuais. Este movimento, quase como uma respiração, que flutua do mais privado ao mais público em sua representação, se apresenta para nós, aqui, como uma grande rede de imagens, uma colcha de retalhos em cinza e rosa, que nos leva ao íntimo de sua expressão.
Presente também nas outras composições da exposição, a forma da grade tem para Pessoto um espaço caro e afetivo: elas são interpretações de uma peça familiar, uma colcha feita por sua avó, que aqui se desdobra em diversos materiais e linguagens, do papel ao vídeo, emanando uma específica aura de carinho. No vídeo Segunda Pele, um fragmento de uma instrução de bordado se torna uma manifestação de campos de cor, aqui, em realidade, recortes de peles de vídeos pornográficos encontrados pela internet. Essa prática, de desdobrar um ambiente tradicional, intercalando sua forma com um conteúdo que não seria automaticamente associado a ele, nos faz questionar os reais espaços onde as imagens habitam hoje, e qual o valor de suas ressignificações e deslocamentos. A colcha também, mais uma vez, se apresenta, agora em Roupa de Cama, onde a emulação de uma colcha se dá a partir da sua apropriação e ressignificação, aqui não mais no tecido, mas no papel, uma prova clara do movimento que o artista faz na transposição de suas referências a diversos suportes artísticos. Também é de se notar a série de desenhos Manhã Seguinte, onde Gabriel efetiva, em grafite, diversas visões e variações sobre uma colcha que flutua sobre uma cama invisível, trazendo, em um só movimento, relações de afeto e sexualidade.
Ao observar o trabalho de Pessoto, uma tônica não me abandona: a de que a construção de um ambiente de afeto é uma tarefa árdua, mas não impossível, e que dentro das diversas significações que as relações, familiares ou amorosas e as possibilidades de trocas íntimas tem, elas encontram, dentro do espaço da articulação artística, um lugar de excelência para sua construção.
Guilherme Teixeira
julho de 2018


 

Serenar
(Texto sobre o trabalho "serenar" realizado no projeto de repintura do muro do Cais Mauá, 2016, promovido pelo Santander Cultural, Porto Alegre, RS)


A obra “Serenar”, do jovem e talentoso artista Gabriel Pessoto, pode ser vista como metáfora do amor entre o rio e a cidade. Através de uma experiência corporal, dois homens que se entrelaçam na penumbra de um leito levam-nos a imaginar uma narrativa poética, na qual o corpo escuro e denso poderia ser o rio, enquanto o corpo iluminado e disperso, a cidade. Porém, esta cena delicada, de atmosfera tranquila e sensual, tem à espreita a realidade do muro, que é um firme símbolo da separação e parece se fazer lembrar, o tempo todo, no predomínio dos tons sóbrios da composição artística. Apesar desta iminência parda, a experiência anterior do artista no campo da produção audiovisual confere a esta pintura uma espécie de linguagem “CinemaScope”, que liberta a imagem ao longo de toda extensão da tela, transformando o corpo do casal em uma acolhedora e idílica paisagem.
André Venzon
Fevereiro de 2016

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