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Regra-de-três

(Exposição coletiva "Regra-de-Três", 2024. Projeto idealizado por Gisela Projects na Galeria Estação, São Paulo, SP)

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vista da exposição Regra-de-três, 2024. Gisela Projects + Galeria Estação, São Paulo, SP.​

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​Quando nos deparamos com certa necessidade de conta matemática frente ao desconhecido, é habitual recorrermos à regra de três. Essa operação, que surge ora como fórmula, ora como método, serve à exposição como um vetor para refletirmos sobre diferentes conformações presentes nas obras aqui expostas. Seu conjunto de trabalhos suscita agrupamentos que mais parecem mapear possíveis usos da ideia de repetição do que encerrá-los em categorias fixas e determinantes. A repetição alude a um gesto que permeou a arte de distintas formas ao longo de sua história moderna, e que hoje encontra pertinência em um sistema contemporâneo, poroso, intempestivo e anacrônico.


Ao explorar a ideia de repetição, esta exposição investe em caminhos imaginados, surpreendendo ao revelar ideias não previstas de antemão. A primeira delas é a presença da geometria, que aqui surge com um caráter vital e talvez antipredicativo. É a geometria das coisas e dos objetos inscritos no mundo. Manuela Costa Lima observa o território ao seu redor, coletando materiais descartados – não apenas uma questão geométrica, mas uma tentativa de organizar padrões, buscando similaridades na diferença e um repetir que sugere o diferir. Marina Sader cria uma trama ao unir elementos distintos diante da mesma superfície, em procedimento semelhante. Sofia Ramos recicla objetos encontrados, transformando-os em esculturas que podem ser brinquedos ou pequenas máquinas. O trabalho de Raylton Parga situa-se nesse limiar, com figurações geométricas que evocam imagens de mobiliário. Chiara Banfi aproxima formas da pintura e da escultura das encontradas na natureza, sua geometria é uma pausa meditativa, que requer repetição para encontrar um tom, ou a ausência que também é som, o meio como ponto de equilíbrio.


Em todos esses casos, o gesto é impregnado por uma ideia de repetição subjacente às tentativas de organizar a matéria. Nos trabalhos de Talita Zagaroza e Francesca Wade, a repetição manual é mais explícita, com formas abstratas que ganham espaço na tela através de sequências imaginárias. Aqui, os trabalhos aparecem em organizações polípticas, gerando ao olhar do espectador conformações cromáticas sequenciais. O meio, nesse caso, pode ser o ponto pelo qual a vista entra na imagem e busca percorrer os seus caminhos. O gesto se torna mais tramado e emaranhado nos trabalhos de Luana Fonseca e Gabriel Pessoto. Seja na bricolagem com miçangas ou na tapeçaria ancestral, ambos utilizam signos de certa generalidade, evocando nas fantasias dos visitantes algo muito particular de cada um, que remonta ao núcleo sensível da memória, bem como desorganiza o seu arquivo imagético (que ao ser repetido irá, necessariamente, produzir diferenças). Sofia Lotti também tece figuras, aproximando suas imagens de uma paisagem contingente – ao nomear suas estruturas de “pétalas”, abre espaço para uma repetição mais indireta.


O mais interessante é que a cada tentativa de cartografar as possibilidades de repetição, encontramos zonas fractais, onde um assunto toca o outro, produzindo sobreposições que ressoam – muitos cenários não poderiam ser imaginados inicialmente. A repetição como forma de trabalhar a memória afetiva está presente nas pinturas de Matheus Chiaratti, que recria e duplica os jardins da casa da avó a partir da lembrança. É aí que entra em cena o imaginário da criança, cuja brincadeira está pautada, desde muito cedo, em uma ideia de repetição. As crianças lidam com uma certa apreensão do ir e vir dos adultos, da reincidência que pauta a coreografia da própria vida. Chiara Sengberg dispõe um trenzinho de brinquedo, que envolve um agregado de diferentes elementos desse universo, em um formato circular, pressupondo uma continuidade desses gestos. Ao trabalhar a pipa como propulsão para a escultura, Daniel Castilho também importa para a cena informações de uma memória de criança, nos devolvendo a sensação de que mesmo adultos é preciso exercitar a imaginação como espécie de válvula de escape. Ao criar um mundo imaginário particular, Fernanda Feher traz para o espaço pictórico diferentes elementos que criam uma história a ser repetida e recontada. Bianca Kann tenta lidar com questões do seu próprio inconsciente, ao criar trabalhos em cerâmica que propõem, em alguma medida, um refazer a si mesma.


Como uma espécie de retorno a um cotidiano no que ele tem de mais trivial, diante do contexto dessa curadoria, Leandra Espírito Santo e Fabio Menino nos remontam as tais coreografias do corpo frente ao dia a dia e seus distintos processos de automatização e acoplagem. Ao trazer objetos de uso manual cotidiano, Fabio isola o fundo que sustenta o uso desses elementos, gerando um deslocamento que nos faz percebê-los investidos de intenção, ainda que seus usos pareçam incorporados. É o gesto da mão que também está presente na proposição de Leandra, empreendendo uma aproximação dos hábitos corporais, aos seus atravessamentos pelo repertório gestual das tecnologias.


Toda repetição pressupõe um ritmo. Se a regra de três alude a um desconhecido que precisa ser arrematado e esquematizado para entregar uma solução, esta exposição é diferente. Aqui, a repetição é uma música cujas partituras sugerem pausas silenciosas e reflexivas. A tentativa de unir as obras sob um tema organizador transforma este conjunto em uma coleção, menos um gabinete de curiosidades e mais uma biblioteca, onde cada informação remete a outra, tecendo uma constelação de sentidos. A coleção de repetições é como um nó, uma zona intermediária – não nos revela o número que falta, mas a possibilidade expansiva de perceber uma mesma ideia manifestada de formas distintas. Das gestualidades cotidianas ao gesto de tecer e pintar; do imaginário infantil às memórias fractais – repetir é sempre repetir diferente, é deslocar-se na constância da novidade e do acontecimento.


Daniela Avellar

Junho de 2024

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vistas da exposição Regra-de-três, 2024. Gisela Projects + Galeria Estação, São Paulo, SP.

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