Fundo Infinito
​Exposição "fundo infinito" (2025) realizada em dupla com o
artista Lucas Simões no 25M sala de projetos, São Paulo, SP)
​​
​​​
​
​
​
Há um mês visitei o ateliê de Lucas Simões a convite de Gabriel Pessoto para flagrar o processo de fusão entre as pesquisas desses dois artistas que convergem na criação de um conjunto de obras para esta exposição na 25M sala de projetos. Nos reunimos ao redor da mesa de trabalho, onde encontrei duas chapas de metal encurvadas que, de imediato, associei às maquetes das esculturas monumentais de Richard Serra. Mas, ali, a densidade e o peso da matéria imponente que Serra projetava em grande escala, parecia se conformar ao tamanho de um livro aberto ou qualquer outra coisa que uma pessoa sozinha pudesse manipular, principalmente pelo fato de que essas chapas duras de metal não pareciam contorcidas pela ideação mágica do artista que cria objetos pretensamente autônomos, mas sua forma parece ruidosamente tensionada pelo bordado de lãs coloridas que salienta sua porosidade e a relação com um corpo e um tempo de trabalho.
​
O trabalho de Lucas constitui por si, ao longo dos últimos dez anos, um amplo repertório de técnicas de cortes, sobreposições e distorções que transformam materiais, objetos e imagens, delineando questionamentos escultóricos sobre a relação forma-espaço-significado e o legado utópico da arquitetura modernista. Gabriel vem explorando as dimensões técnicas da criação da imagem entre tecnologias digitais e manuais, integrando-as em sua poética que articula reflexões sobre memória, desejo, intimidade e os papéis de gênero na cultura visual contemporânea. No encontro dessas duas trajetórias, Gabriel e Lucas partiram da trama do tecido e desenharam uma série de padrões para testes de perfuração em chapas de metal que passariam a atuar como suportes tridimensionais dos bordados que também estavam desenvolvendo para compor esta instalação.
​​
Fundo infinito é um primeiro desdobramento desse exercício de criação compartilhada em que escultura e bordado se amalgamam e evidenciam a ambiguidade da relação entre ambas linguagens com os significados (valores) que suas materialidades e tecnicidades foram ganhando em nosso contexto cultural classificatório, onde a insistência em padrões de binarismos relega todas as coisas a um grid de assimetrias. Se as técnicas têxteis, mesmo diante de sua industrialização, ficaram associadas à delicadeza, ao âmbito doméstico e corporal, capitulando a “invenção da feminilidade” [1], a escultura moderna conquistou o espaço público da monumentalidade, sempre exigindo e pressupondo “um corpo masculino como medida” [2] tanto para quem esculpe quanto para quem observa.
​
Nesse trabalho de Gabriel e Lucas as técnicas e materialidades do bordado e da modelação de chapas metálicas se fundem porque se interpõem, uma oferecendo insights e limites para a outra, de modo que seus resultados, cada peça mostrada aqui, culminam de experimentações que visam a possibilidade de uma abrigar a outra. O bordado feito a mão pelos dois artistas através do aço perfurado — elemento intransponível nas esculturas de Serra —, enfatiza a busca paciente por criar poros, vias de passagem e fluxo, até o limite suportável para que a matéria não perca seu grau de rigidez estruturante. Enredadas, côncavas, instaladas em diferentes ângulos, muitas vezes apoiadas ou penduradas na parede, essas peças negam a verticalidade e autonomia das esculturas públicas com sua intenção de heroísmo e autoridade, propondo um outro engajamento com o espaço e com o tempo.
​​
Embora suas formas evoquem os painéis usados em estúdios fotográficos para criar a ilusão de um contexto sem horizonte ou bordas visíveis, os fundos infinitos aqui não são neutros ou induzem à suspensão de um objeto; a operação leva ao efeito contrário, são eles os objetos de superfície densa a que se enfocar. E o contexto também é reintroduzido pelo jogo, negociação ou embate entre os materiais de características opostas que se interpenetram, reintroduzindo o tempo, o trabalho do corpo, da gestualidade manual e da falha que configuram a criação da imagem como ruína e desejo simultaneamente.
​
Dialogando com reflexões sobre as várias formas de se mostrar objetos em enciclopédias, vitrines e redes sociais — o teatro silencioso do desejo e o simulacro que substitui o real [3] —, Fundo Infinito tem seus avessos, revela os procedimentos de construção da imagem, reatando-a com o corpo. Nessas esculturas bordadas ou bordados escultóricos, os sentidos dos materiais e técnicas se confundem, até mesmo por uma aparente inconciliabilidade de seus aspectos à primeira vista, uma espécie de colagem tridimensional em que algumas definições binárias são bagunçadas e seus limites se tornam suspeitos: o contornar e o entrelaçar, o industrial e o doméstico, o tecnológico e o artesanal, o virtual e o real… Como também o são nossos corpos, nem naturais nem artificiais, mas uma composição dinâmica de fluxos culturais e técnicas [4].
​
Em cada parte dessa instalação, a espessura e o peso das imagens indicam para uma trajetória poética de dois artistas retornados de um mergulho-resgate. E tudo isso me lembra muito a nota manuscrita de Jean Genet que serviu de epígrafe para seu último livro, Un captif amoureux (1986), que trago para fechar este texto sem querer encerrar os fundos-objetos:
​
« Mettre à l'abri toutes les images du langage et se servir d'elles, car elles sont dans le désert, où il faut aller les chercher. »
​
[“Colocar a salvo todas as imagens da linguagem e usá-las, pois elas estão no deserto, onde é preciso ir buscá-las”]
​
Tálisson Melo
​​
​
​
1. Rozsika Parker. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine (1984).
2. Anne Wagner. Three Artists (Three Women): Modernism and the Art of Hesse, Krasner, and O'Keeffe (1996).
3. Por exemplo: Guy Debord. La Société du spectacle (1967). / Jean Baudrillard. Simulacres et Simulation (1981). / Paula Sibilia. O show do eu (2008).
4. Paul B. Preciado. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018).
​