Gabriel Pessoto: Descanso de tela
Texto escrito para a exposição "Descanso de tela", 2024,
realizada na galeria Luciana Caravello, São Paulo, SP.
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O Livro XXXV da História Natural, de Plínio, O Velho, é conhecido por narrar as histórias dos mais célebres pintores da Antiga Grécia, no período que marca a transição entre o Século de Péricles e o Período Helenístico. Viveram nessa época Zêuxis, conhecido por sua insuperável excelência e capacidade imaginativa, e Parrásio de Éfeso, ativo em Atenas, cidade onde gozou dos luxos e hábitos excêntricos que cultivava. Plínio conta que, certa vez, Parrásio, desejando superar Zêuxis, chamou-o para um desafio: Zêuxis levou, então, uvas pintadas com tanta veracidade que os pássaros quiseram bicá-las; Parrásio, por sua vez, levou uma cortina tão naturalmente representada que Zêuxis, todo orgulhoso do veredito dos pássaros, pediu que finalmente puxassem a cortina para mostrar o quadro. Zêuxis, reconhecendo sua ilusão, admitiu com franca modéstia ter sido vencido: enquanto ele apenas havia enganado pássaros, Parrásio havia enganado um artista, ele mesmo um reconhecido mestre dos artifícios da pintura. Histórias como essa, que envolvem cortinas, pássaros, frutas e paisagens, e cuja narrativa solicita termos como verdade, engano e ilusão, orientaram a história da pintura ocidental. Ingano, carnosità, verità, parer vivo são, não por acaso, termos frequentes no léxico artístico da crítica de arte do Renascimento na Itália. Tudo teria caminhado nessa direção – da simulação do real e da trapaça do olhar – se a invenção da fotografia, no século XIX, não tivesse escancarado que a pintura não seria, dali por diante, mais do que um componente (na melhor das hipóteses) da história das imagens. Daí por diante, a cortina de Parrásio se tornaria ou um mito de refundação da pintura ou uma alegoria (quase paródica) da qualidade planar da pintura, sempre lembrando, tacitamente, que toda pintura suscita, no fundo, um retorno às suas origens, mesmo quando seu intuito é negá-la.
A produção recente de Gabriel Pessoto parece se organizar como um comentário sistemático e especulativo, com alta dose de gratidão, à história que nos ensinou que um tableau não é um recorte da realidade, mas uma invenção dela. O conjunto de obras reunidas nessa exposição dão conta de apresentar uma pesquisa extensa e obstinada sobre o objeto-tela, suas ambiguidades constitutivas e sua natureza construída. Descanso de tela, título da mostra, pode se referir ao programa que preenche a tela com imagens durante o período em que não foi solicitada, ao efeito de descansar os olhos da tela por seu excesso de uso ou ao descanso da tela, se ela mesma for pousada sobre uma superfície (como se ela fosse um ser que se cansasse). Essa polissemia do título não somente responde às três questões transversais de seu trabalho – Como se formam as imagens? De que elas são feitas? Qual o limite de sua eficácia? –, como também incide diretamente sobre o principal conjunto de obras apresentadas na exposição, da série intitulada “Escolha o mais bonito”. Nessas obras, Pessoto revisita o tema da moldura, o dispositivo que interrompe a paisagem e define tudo o que é imagem de tudo o que não é, identificando o que é significante do que é simplesmente vivido [1]. A moldura, que é a margem, o limite, a fronteira, é aqui transformada em objeto para, em seguida, ser solta em um espaço desprovido de qualquer referência concreta. Sua objetualidade, dada pela distorção de perspectiva, é reforçada pelo fundo comum entre o fora e o dentro do plano pictórico. Diferente da obra “Enquadramento”, que busca discutir exatamente a arbitrariedade da moldura sem deixar de enfatizar sua vocação decorativa, os quadros de “Escolha o mais bonito” não querem sequer denunciar tamanho poder de decisão. Eles parecem reivindicar unicamente o repouso, a economia de energia. Se as telas descansam porque estão livres de gravidade ou porque esvaziam a imagem de sentido, não sabemos. O que sabemos é que a tela descansa.
Essa mesma qualidade objetual da moldura tematizada na tela reaparece ainda, de maneira inusitada, em seus desenhos-receitas. Essas instruções de bordado, código de difícil decifração, de língua quase hieroglífica, são lidos como mapas, rotas de avanço da linha e de definição de áreas de cor, visando alcançar a imagem indefinida. O mapa, sabemos, é em si uma abstração que responde ao desejo de ver à distância, de classificação do espaço e de vigilância das áreas através do controle das fronteiras. Enquanto paisagem invertida, o mapa é uma janela impossível, o inverso do céu e o “antídoto anti-nítido”. Mapa e moldura encontram-se em suas respectivas capacidades de se fazer limens (a união que é separação, e vice-versa), mas se desencontram quando o critério não está mais circunscrito à qualidade gráfica, mas à qualidade plástica do objeto. O contraste entre a espessura e o peso da linha do mapa e a linha densa e volumosa da moldura é também assunto importante no trabalho de Gabriel Pessoto, para quem descobrir a organização dos pixels em uma imagem digital corresponde ao modo como as linhas serão traçadas no gride.
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Diferente de artistas como Alain Jacquet, Sigmar Polke, Thomas Ruff, Thomas Hirschhorn e tantos outros que se interessaram pela produção dos efeitos óticos do pixel na imagem, Pessoto, ao contrário, parece querer estudar o modo como os pixels vão se comportar. Seu interesse está na passagem da imagem digital para a imagem artesanal, da luz para a opacidade, do desmaterializado para a substância. Talvez seja por isso que a cortina o interesse tanto: é ela quem garante o mistério da técnica e aguça a curiosidade do que ela esconde; é ela quem afirma que a imagem é construção e que profundidade é relativo; é ela que cria o ambiente (palavra-chave em sua pesquisa) e, ao mesmo tempo, suspende o anúncio de uma nova paisagem. Em suas linhas, a cortina é, ela própria, a pintura e o descanso de tela.
Renato Menezes
Novembro de 2024
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[1] Victor I. Stoichita. L'Instauration du tableau : Métapeinture à l'aube des temps modernes, Genève: Droz, 1999, p. 53
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Renato Menezes é historiador da arte e curador. Graduado em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em História, com habilitação em História da Arte pela Universidade de Campinas. Doutorando em Historia e Teoria da Arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Entre 2020 e 2021 foi Grad Intern no núcleo de arte latinoamericana do Departamento Curatorial do Getty Research Institute, em Los Angeles. É coeditor do livro "França Antártica: Ensaios Interdisciplinares" (Editora da Unicamp, 2020). Desde 2022 é curador da Pinacoteca de São Paulo, onde realizou diversas exposições entre as quais se destacam "Denilson Baniwa: Escola Panapaná" (2023), "Alex Cerveny: Mirabilia" (2023), "Jarbas Lopes: eixos" (2023), "J. Cunha: Corpo tropical" (2024), "Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana" (2024). Realizou pesquisas sobre a recepção da tradição clássica, arte brasileira e francesa do século XIX, história da colonização nas américas e história da crítica de arte italiana do século XVI. Atualmente, interessa-se pela produção têxtil africana e afro-brasileira, pelas formas de colaboração afro-indígenas, pela produção de arte popular brasileira.
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