Curto-Circuito
Exposição "Ambiente Moderno", 2021.
Galeria da Fundação Ecarta - Porto Alegre, RS
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No texto de divulgação da exposição “Ambiente Moderno”, de Gabriel Pessoto, o curador Gabriel Bogossian descreve algumas obras do artista como sendo uma espécie de “pequeno curto-circuito de técnicas”. Minha reflexão acerca da produção de Pessoto partia já, mesmo antes de me propor a desenvolver o presente texto, de uma análise dos processos de hibridação presentes em suas obras, principalmente as que são elaboradas a partir de uma relação entre o ponto- cruz dos bordados e a digitalização das novas mídias.
Essa hibridação, esse “curto- circuito”, como Bogossian tão bem descreveu, parece surgir no trabalho de Pessoto em um contexto que Marshal McLuhan descreve como sendo uma resposta a ambiência das novas mídias no processo de assimilação destas pela contemporaneidade. McLuhan diz que são os artistas os primeiros a se aventurarem por essas tecnologias e que os fazem através de uma assimilação de seus procedimentos por meio de formatos já conhecidos no imaginário popular. Essa transdução de uma nova mídia em uma linguagem já assimilada torna o processo de compreensão desse choque menos doloroso, mais familiar. No trabalho de Pessoto, esse processo é visível pela ressignificação dos materiais, como apresentado na instalação “mesa” - que toma o tecido como papel, e a louça como tecido -, e pela reapropriação dos procedimentos digitais pelos trabalhos que utilizam o ponto-cruz como modo de construir imagens análogo ao do píxel (ou talvez quando usam o píxel como ponto-cruz).
O processo de hibridação entre o píxel e o ponto do bordado, entretanto, ocorre de uma forma complexa, ainda que possa nos parecer uma simples relação formal entre as técnicas. Para compreender a profundidade na qual é criada essa assimilação entre píxel e ponto-cruz é preciso recorrer a uma análise do artista francês Edmond Couchot sobre esse ponto final constituinte das imagens digitais. O píxel representa, para o Edmond, a total hibridação entre tecnologias televisivas e as de cálculo computacional, gerando uma imagem que se apresenta como ótica - tal qual a fotografia analógica, ou a própria câmera obscura que projeta a perspectiva para a pintura -, mas que carrega em sua morfogênese todo automatismo do cálculo e da simulação computacional. É esse mesmo tipo de hibridação que vemos no trabalho de Gabriel Pessoto, mas dessa vez tomando o bordado como processo orgânico em contrapartida ao processo digital.
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A hibridação, vale lembrar, ocorre de forma simétrica nas obras de Gabriel Pessoto: ela é tanto o processo digital circunscrito no “artesanal” do bordado quanto o processo do bordado transposto ao digital. O artista deixa explícita essa relação quando recorre ao modelo de instruções do bordado para criar o vídeo “Flor Singela”. Cada vídeo, extraído de pornografia vintage, funciona como um ponto porvir para o desenho; cada ponto deste é formado por imagens compostas por píxels, calculadas e inseridas em um contexto de simulação. Segundo Couchot, nenhuma imagem digital corresponde mais a um objeto/sujeito real: é sempre um simulacro gerado pelas instruções dos códigos que formam as imagens. Quando Pessoto sobrepõe o píxel dos vídeos formando uma matriz na talagarça do bordado há uma meta-instrução em ação: os códigos que formam a imagem digital e o código da receita do bordado porvir.
Gabriel Pessoto nos deixa claro que há um forte interesse por uma materialidade. Esta, então, é reconfigurada de uma maneira que, ao mesmo tempo que possa causar algum tipo de estranhamento, também remete a um local de conforto. Tal conforto se deve a essa hibridação; a esse processo de assimilar as materialidades e as temáticas; de reconhecer ali tanto os procedimentos que já nos são familiares quanto os que ainda estão em desenvolvimento; bem como ao esmaecer a representação explícita do que a intimidade esconde.
Chico Soll
Janeiro de 2021